sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Beco sem saída



Acordara ali sem saber onde estava. Lembrava que havia tomado comprimidos. Muitos. Cortado veias e artérias nos braços e pescoço. Já estava apagando quando ainda tentava encontrar uma artéria, mas o máximo que conseguiu foi achar uma arteríola, não suficiente para ajudar no seu intento. O que poderia levá-lo a morrer era a falência renal causada pela overdose de comprimidos para quimioterapia e outras drogas. Pelo que percebera acordara no inferno. O primeiro pensamento mais claro foi “merda, quem se suicida vai mesmo pro inferno. E ele, o inferno, existe. Porra!”. Numa espécie de cama com colchão de um milímetro de espessura quando muito e um calor de matar, dormiu. Foi acordado por alguém de jaleco branco para entrar numa fila com outros moribundos e tomar uns comprimidos estranhos de formatos, tamanho e cores variados. Muitos. Como chegou até a fila e conseguiu ficar em pé é um dos mistérios que não seriam desvendados ali, palco de muitas coisas estranhas. Afinal para que tomar comprimidos no inferno? Escutava gritos, gemidos, grunhidos, latidos e o suor escorrendo exalando mau cheiro. Quanto tempo estava ali? Horas, dias, semanas? Noção de tempo era privilégio que não ousaria. Afinal estava pagando o que fizera. Quando conseguiu erguer os olhos por conta de um berreiro de alguém, conseguira ver seus braços ainda cheios de sangue. Isto lhe deu certo alívio, pois o tempo afinal lhe era mostrado. E, com certa acurácia no sentir, fora aos poucos percebendo que ainda estava vivo, mas ainda assim numa espécie de inferno. No exato momento que descobriu ou ainda desconfiou estar vivo, alguém mijou em seus pés, para logo em seguida outro fazer o mesmo na cabeça. Não conseguia se mexer. Apagou de novo. A mistura do suor e mijo já não importavam mais, era o cheiro do lugar. Sem ideia de quanto tempo ficara ali sendo que as únicas coisas a lhe levantar eram, a maldita hora de tomar aquelas drogas e para descer e comer. Descer. Era ou não era um inferno? Talvez um purgatório onde não se conseguia comer nada, sem fome, sem vontade de fumar. Sem vontade. Mais mijos se seguiram junto com merda desta vez. Ainda não conseguia reagir e acreditava merecer aquilo. Já não sabia se tinha febre ou o calor que lhe era o termômetro dando a temperatura. Pensamento algum conseguia se fixar, apenas o básico e olhar para o que acontecia. Brigas pela comida que deixava no prato. Perseguição por ser forte para eles que eram muito magros, baixos e sem dentes. Para eles talvez representasse uma ameaça. Por isso mesmo sofria agressões e ameaças. Mijadas e cagadas dia e noite. O homem do jaleco branco apenas ria, não saberia dizer se pelo fato em si ou por não conseguir falar palavra alguma, completamente mudo. Tivera mais uma prova de que provavelmente ainda estava vivo quando recebeu uma carta de sua mãe com algumas frutas, imediatamente devoradas por aqueles seres sem dentes. Poderia se perguntar como eles conseguem mastigar maçãs sem dentes. Mas a carta que importava. Nela lera uma angustiante dúvida sobre tudo, talvez mais que pudesse ter. Lá também havia algo que queria responder, escrever para ela, mas o homem do jaleco branco perguntou para quê? Além de não conseguir falar, não podia escrever. Só podia ficar deitado sem descer para comer, mesmo obrigado por uma mulher de jaleco branco, e aguardar a próxima mijada ou o cuspe no copo que não lhe pertencia.

Uma vez conseguiu ir ao único banheiro no lugar, utilizado por lá saberia dizer quantos desdentados. Começara a se molhar para tirar o cheiro de mijo. A água era fraca, não conseguia ficar em pé e, quando um desdentado o viu, chamou outro que chamou mais um e logo havia uns dez desdentados no tal banheiro. Fora mordido, derrubado, espancado, surrado. Esperma era o novo mijo. Não via mulheres desdentadas ou não até ali. Apenas a de jaleco branco, talvez a cozinheira. Após este episódio, era o primeiro da fila para tomar as drogas que não lhe deixavam pensar. Passara a ser acordado por brasas de cigarro. Algo como um esporte local, talvez por ser o único com dentes. Merecia aquilo tudo. Algum pensamento veio e estava em dúvida, aquilo era o inferno, era o purgatório ou estava vivo em uma instituição de doentes mentais? Mas logo era hora do homem do jaleco branco, mais drogas. Sem pensamentos. Sem fome. Sem nada, além de esperar a morte. Afinal não era o que queria no começo? Do que reclamar? Que fosse logo. Que cortassem sua garganta a qualquer hora. Que arrancassem sua pele quando fosse ao banheiro. Que dessem uma overdose do comprimido caramelado laranja.


A carta de sua mãe o mantivera por algum tempo são, se é que se poderia afirmar tal coisa. Aprendera que a esperança era algo tão inútil quanto rezar para que algo ou alguém o salvasse. Nada poderia mudar aquilo. Levasse o tempo que fosse. Ficaria ali, comendo o pão que o diabo amassa todo dia para quem merece. E por merecimento, comeria todo dia este pão, fazendo cara de alegria para não ter que comer mais. Os desdentados não o esqueciam nunca. Faziam parte do todo que era aquele inferno. Estivesse ele vivo ou morto. Ali era um inferno. E, fatalmente aconteceu. Não teve retorno. Os dentes começaram a cair e então começara a mijar onde bem entendesse. 




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